Um filho com estrelas Michelin

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Publicado em:
9 Março, 2022

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No que toca à parentalidade é comum começar-se a imaginar, prever e planear como irá ser o futuro daquela criança, quase como que se quisesse seguir um livro de receitas.

Alguns pais têm a trajetória do filho toda planeada.
Mas quais foram os critérios que sustentaram isso? Como é que conseguiram planear, sem o conhecer? Será que foi através de ideias padronizadas? Mas ora então se um dia mais tarde se gosta de dizer “o meu filho é único” (porque tem de ser sempre o mais especial de todos) como é que à priori se pode dizer que seja igual aos demais (porque afinal de contas têm o desejo que o filho siga um caminho que funcionou para outra pessoa)?

Mas, além desse planeamento (ou imaginam eles que o têm), consideram ser tanto quanto o necessário interiorizar: “prometo fazer o meu melhor” – alguns pais fazem este juramento antes do bebé nascer. Naturalmente que o fazem (quando pesquisa diversas receitas sobre uma mesma sobremesa, se calhar já deu por si a procurar: “o melhor bolo de cenoura”… não basta “bolo de cenoura” ou um “bom bolo de cenoura”, tem ser “o melhor bolo”) … querem o tanto e não se contentam com o tão-pouco. Talvez por essa insatisfação é que ao longo do desenvolvimento, os filhos, parece que têm de corresponder a expectativas e desejos dos pais (“tem de ser feliz”; “ser bom naquilo que faz”; “ser bem-sucedido” e “destacar-se” – quase como se fossem os ingredientes base para o bom crescimento).

Podem surgir repercussões – quer na criança, quer nos pais – quando um filho, é caracterizado como “uma criança que se porta mal”. Nomeadamente, os pais podem-se sentir ofendidos ou ressentidos pois a criança pode passar a ser o símbolo de que eles “não prestam”; de que não são “bons pais”; ou que são “pais incompetentes”. Outros pais, para evitarem que o filho seja caracterizado desta forma e, por sua vez, as suas capacidades educativas sejam atacadas, tentam então equilibrar a balança, adotando a ideia: “se eu fizer o meu melhor como progenitor”, significa que “terei o melhor filho”.
É natural os pais gostarem que os filhos sejam elogiados, pois inerentemente a isso, podem sentir que são enaltecidas as qualidades como progenitores.

E, apesar de os pais se comprometerem a conseguir, podem surgir imprevisibilidades, medos, dúvidas perante situações que os próprios não conseguem regular emocionalmente. Comumente, os limites e a atenção parecem ser impulsionadores deste desconforto emocional. A delicadeza (os vários “sins” ou permissões para tudo), dificilmente curará um certo mal-estar no estômago (as birras), podendo até contribuir para indigestões (birras em excesso podem levar a um estado de saturação por parte dos
pais). Atenção… as birras são um comportamento normal, visto ser uma expressão saudável da necessidade de independência e autonomia da criança. Colocar limites (os famosos “nãos”) de forma eficaz não pressupõe que se seja autoritário; contribuiu para que a criança se sinta segura quando o fazem de uma forma clara, coerente e consistente.

Por vezes os pais disponibilizam uma quantidade q.b. de atenção – pode não ser uma questão de escolha (por considerarem que a atenção que disponibilizam é suficiente; por acharem que não têm mais tempo livre), mas uma questão do que é possível dar (por de facto o emprego, as tarefas domésticas e outras responsabilidades impedirem que consigam estar mais presentes). Contudo, em certos momentos pode aperceber-se que se sente na iminência de “fritar a pipoca” e que acaba por dar mais atenção do que a que previa. Pode-se sentir frustrado com isso, mas é legítimo que o mesmo aconteça – as crianças procuram atenção, especialmente a dos pais, seja ela de natureza positiva ou negativa. Se não receberem a atenção positiva, tendem a obter a negativa, portando-se mal (isso é preferível a não receber qualquer tipo de atenção). Ou também pode ter medo que a panela de pressão rebente, pois sente que o que lhe é exigido, ultrapassa o máximo
que lhe é possível dar (visto que por mais atenção que dê, por mais momentos de brincadeira que partilhem, parece que nada satisfaz o seu filho).

Saliente-se ainda que, não pesa só a promessa: a forma como se educa; o modo como se exige; a maneira como se abre as portas para as atividades extracurriculares ou oportunidades educativas; como se contribui para os seus sonhos, vai moldando a criança e isso é um processo natural. Contudo, há pais que esperam que os filhos se tornem numa extensão de si; ou melhor…que sejam uma receita aprimorada, para que lhes seja atribuída
uma estrela Michelin.

Aquele desejo inicial de se seguir o livro de receitas pode provocar algum dissabor nos pais, porque por vezes acabam por constatar que afinal não foi possível tornar a criança através daquela receita que tanto queriam. Pode surgir a culpa: “afinal de contas, se tivesse educado de maneira diferente, o meu filho não seria assim”. Contudo, é importante perceber que existem coisas que apesar de se conseguir imaginar, não se consegue controlar. E o primeiro instinto até pode ser o de tentar fugir dessa dor e dessa desilusão, o que também é válido de ser sentido.

É certo que não se erra a receita propositadamente. Mas, parece que ocasionalmente se ingere uma grande quantidade de informação que depois não se digere. Somos nós tão capazes de pensar que fugimos de o fazer e por vezes só o fazemos quando já não há alternativa. Talvez sintam que ao fugir, o problema fica em banho maria e é mais ou menos durante esta fase que parece que o temporizador da cozinha apita e os pais ao perceberem que já não dá mais para empurrar o problema com a barriga, procuram um psicólogo ou psicoterapeuta para a respetiva marcação de consultas.

Autora

Cátia Soreira, Psicóloga Clínica (CP O.P.P 25484).

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