“Recebe o que há em mim que és tu“
Alejandra Pizarnik
Imagine um livro do qual só resta a capa, ou uma fotografia gasta pelo tempo ou cortada pela metade… são objectos misteriosos, resquícios de coisas que existiram mas já não são; exercem uma espécie de fascínio que nos atrai, quase como uma «magia» que nos impele automaticamente para o acto de imaginar como seria o livro ou qual a parte que estará em falta da fotografia.
Também assim é quando estamos perante uma pessoa; o fascínio é quase imediato, e sem disso darmos conta liberta-se essa espécie de «magia» que nos leva a fantasiar acerca dos pensamentos e da vida dessa pessoa; isto acontece em grande parte porque os mecanismos psicofisiológicos que equipam o nosso corpo actuam de forma que, por um lado tenhamos consciência daquilo que nos rodeia, e por outro lado e de forma a manter o equilíbrio (homeostase), operam de forma a preencher os espaços vazios do desconhecido. É daqui que surge em grande parte a atracção que muitas vezes sentimos quando estamos perante alguém que se revela uma pessoa misteriosa ou complexa.
É fantástico, porque nem nos damos conta disso, não precisamos de parar para pensar ou fazer disparar de forma consciente este processo; simplesmente acontece; o mesmo fenómeno se revela a toda a hora no âmbito das nossas relações sociais; normalmente não precisamos fazer um esforço consciente para que nos lembremos do nome das pessoas com quem convivemos regularmente, onde vivem ou qual a parte comum da nossa história de vida. Simplesmente lembramo-nos, quase como que por «magia» duma panóplia infindável de coisas acerca de várias pessoas e contextos onde se encontram inseridas. Como se o cérebro fosse uma espécie de estúdio de revelação de cenários e memórias, revelam-se automaticamente memórias que nem imaginávamos ter.
Mas esta «magia» levada a cabo pelo cérebro não é nenhum truque nem acontece por acaso; faz parte dum naipe de equipamentos e competências cognitivas que nos capacitam para o processamento quase instantâneo e em simultâneo de milhares de estímulos provenientes de duas fontes: aquilo que é exterior e aquilo que está dentro ou faz parte de nós; da integração das informações decorrentes deste processamento da informação resulta aquilo que convencionou chamar-se «mente humana»; esta constrói-se assim sobretudo com base nas nossas experiências e nas aprendizagens que delas retiramos e que, conjugadas com a predisposição genética contribuem fortemente para o nosso sentido de individualidade e unicidade. Aquilo que gostamos de sentir, que somos únicos e especiais!
A mente pertence por isso a cada um, é exemplar único e não é replicável; também é com base nela que construímos a noção do «Eu», que é uma espécie de representação do nosso corpo no nosso Cérebro (incluindo tudo o que são sensações, emoções e sentimentos).
O «Eu» funciona assim como um processador de dados, uma espécie de filtro, responsável pela integração da informação proveniente do interior (sensações físicas, emoções e sentimentos) e do exterior (estímulos provenientes dos sentidos).
É assim que, perante qualquer situação, «Eu» faço uma determinada avaliação, que me permite construir a «Minha» perspectiva; é por isso difícil ser neutro na avaliação de determinadas situações; e é também esse um dos grandes desafios colocados aos Psicoterapeutas, abstrair-se da sua perspectiva pessoal acerca dos problemas dos seus pacientes.
Todos estes mecanismos estão na dependência de processos inconscientes e conscientes.
Convido o leitor a fazer o exercício de se tornar consciente das coisas durante 10 segundos…
Concerteza a maioria parou para olhar à sua volta, ou reparar nos sons, nas cores ou nos objectos presentes no espaço físico onde se encontra.
É curioso como quando pensamos em «consciência» dirigimos a nossa atenção para coisas exteriores a nós (ter consciência das cores, dos sons, dos cheiros, das pessoas), mas a consciência diz respeito e está dependente em grande parte do que se passa dentro de nós (ter consciência dos sentimentos e dos estímulos internos, como ter fome, medo, sede ou raiva, ou ter consciência do efeito que determinados sons têm em nós por exemplo).
A consciência é um estado de vigília responsável pela capacidade de representar dentro de nós e através de imagens mentais, aquilo que nos rodeia (a nossa consciência do mundo) e é um mecanismo altamente adaptativo, quase como uma arma defensiva que nos torna flexíveis e capazes de ter comportamentos favoráveis à vida e à sobrevivência.
Também é com base neste processo que construímos a noção do «Tu», um outro exterior ao «Eu»; mais concretamente, a representação na consciência dos nossos estados corporais e emocionais, leva-nos a inferir acerca dos estados corporais e emocionais dos outros; se perante determinada situação, «Eu» me senti assim, imagino ou é provável que perante a mesma situação, «Tu» te sintas de forma semelhante; são estes os fundamentos da empatia, também ela uma espécie de «magia» que nos permite quase como que «intuir» acerca daquilo que os outros poderão estar a pensar ou a sentir.
Todos conhecemos a relevância das interacções sociais para o nosso desenvolvimento e bem-estar enquanto pessoas; seria quase impossível sobrevivermos e termos uma saúde mental equilibrada se vivêssemos em completo isolamento ou na ausência de qualquer tipo de contacto social; no entanto a interacção social pode também ela ser geradora de desajustes e desequilíbrios emocionais, principalmente quando a relação entre o «Eu» e o «Tu» não tem equilíbrio suficiente para que seja promotora de bem-estar. É o caso por exemplo, de algumas relações amorosas, laborais ou familiares (na minha perspectiva todas as relações humanas, independentemente do tipo, são sobretudo relações emocionais, porque dependem em grande medida dos estados emocionais de cada um).
Também sabemos que muitos dos desajustes e conflitos existentes nas relações dependem consideravelmente da avaliação que cada um dos intervenientes faz acerca das situações concretas; ou seja, perante determinada situação o «Eu» faz a sua avaliação e tenta inferir o que «Tu» poderás estar a pensar ou sentir;
Portanto, para o «Eu», o «Tu» é como uma espécie de projecção de si mesmo e é nestes entretantos que a maioria dos mal-entendidos se gera; muitos conflitos entre as pessoas terminam quando se esclarecem os pontos de vista de cada um e se chega à conclusão que tudo não passou de um mal-entendido (uma má avaliação) daquilo que o outro pensava ou sentia, “eu pensava que tinhas feito isto porque «tu» te sentias de determinada forma, mas afinal…”.
Por exemplo, imaginemos que sentimos raiva de alguém e naturalmente desenvolvemos uma certa agressividade em relação a essa pessoa; quase sempre essa agressividade faz com que interpretemos os comportamentos dos outros como sendo dirigidos a nós, como se nos quisessem atacar; passamos a atribuir-lhes a qualidade de agressivos (quando na verdade, neste caso a agressividade está já dentro de nós).
Outro exemplo, bastante frequente nas relações amorosas: quando nos sentimos desvalorizados pela outra pessoa, tudo o que ela faça será visto e analisado à luz dessa desvalorização; mesmo os sinais em sentido contrário (quando nos valorizam, podemos sentir que estão apenas a compensar-nos); tudo é assim analisado à luz desse sentimento, e a raiva e desconfiança gerada por ele faz com que tudo que o outro faça ou diga se torne insuficiente. Como consequência sentimo-nos sempre desvalorizados. Se aquilo que os outros fazem nunca é suficiente para nos sentir-mos valorizados, se calhar é o nosso aparelho emocional que está sintonizado para captar tudo como um acto de desvalorização.
Muitos desentendimentos e falhas na comunicação entre as pessoas são resultantes de juízos errados acerca dos outros (mas, por «Eu» pensar ou me sentir assim, não significa que «Tu» penses ou te sintas da mesma forma).
A nossa avaliação acerca dos outros nunca é neutra ou isenta, porque a avaliação daquilo que «Tu» és depende sempre das experiências e percepções do «Eu» e daquilo que eu sou.
Como num filme no qual cada actor representa determinada personagem, e onde muitas vezes actor e personagem se confundem, no campo dos relacionamentos nem sempre tudo o que parece é, essencialmente porque aquilo que achamos que sabemos acerca dos outros está dependente em grande parte daquilo que sabemos acerca de nós mesmos; é por isso que a nossa representação mental e suposto conhecimento acerca dos outros, depende em grande parte daquilo que há de «meu» projectado em «ti», ou seja, do Teu lado Meu!
Autor
Rolando Andrade, Psicólogo Clínico (CP O.P.P 4365).
Outros artigos
- A importância da lavagem das mãos
- Saúde Mental e Qualidade de Vida
- Desfralde: uma jornada de paciência, de respeito e de apoio para com a criança
- Hipertensão Arterial
- Fazer dos hábitos um hábito