São pessoas, não são doenças…!
Enquanto Psicoterapeuta, todos os dias tenho oportunidade de escutar estórias incríveis de vida, relatos tantas vezes angustiados de luta, sofrimento e superação. São vidas com protagonistas (na vida de um protagonista existem também outros protagonistas) que muitas vezes sofrem ao longo de vários anos, tantas vezes em silêncio (o problema é que a angústia faz-se sempre ouvir) e que se sentem perdidos, vazios, negligenciados, abandonados, revoltados ou simplesmente alheados ou afastados da sua essência. Cada sessão de Psicoterapia é como um capítulo de uma aventura fantástica.
Todas as estórias têm um início; na Psicoterapia nunca começam com um “Era uma vez…”, e tampouco terminam com um “e foram felizes para sempre…”. Pelo contrário, a maioria começa com um silêncio, um olhar tímido, uma hesitação, “sinto-me triste”, “não sei que fazer”, “sou doente”, ou um doloroso e ameaçador “preciso da sua ajuda!”, mas “nem sei por onde começar”. O início de qualquer coisa é sempre difícil, pode despertar medos… acordar monstros, gerar rupturas. Mas sem início nunca se chegará ao fim!
A maioria das pessoas começa por falar-me da sua condição, de como são doentes ou de como outros profissionais de saúde lhe diagnosticaram uma patologia (aquilo que constitui ou caracteriza uma doença). Passo longas horas do meu dia, muitas vezes com a voz em silêncio mas com a mente bem alerta, à escuta, calma e atentamente tentando descobrir por onde anda a pessoa perdida neste labirinto de emoções e sintomas; quem é esta pessoa que assume o papel de protagonista desta estória muitas vezes agonizante. É preciso ser paciente, não ter pressas, a Psicoterapia é uma prova de resistência, não uma prova de velocidade.
Na Saúde Mental, principalmente ao fim de longos anos de sofrimento, a linha que separa a pessoa da sua doença é muitas vezes ténue e subtil. Pode ser mesmo indecifrável. “Sou doente” é a marca indelével que podemos encontrar em alguém que perdeu a sua identidade, que se sente estilhaçado e dominado pelo sofrimento da doença. Já não existe uma pessoa (criatura humana), existe uma doença!
Esta é a cicatriz característica da desesperança, da rendição, da falta de forças, o grito de alguém que não vê um sentido ou direção, a não ser aquele que os sintomas da sua doença lhe apontaram.
Enquanto psicoterapeuta cultivei a paciência, a compreensão, a capacidade de esperar, o saber escutar as pessoas muito além dos sintomas que os atormentam. Em cada pessoa, as doenças manifestam-se de forma única (embora com semelhanças), por isso costumo dizer que a doença é do doente; é muito diferente “ter uma doença”, “sentir-se doente”, ou “ser um doente”. Por exemplo, alguém pode ter um cancro, mas não ter ainda sintomas da doença (não se sentir doente) e por isso não se considera um doente.
Por isso esforço-me por respeitar os ritmos próprios de cada pessoa, trazê-la à superfície, saber quem é, de onde veio, por quem anda acompanhado e para onde deseja ir. Aquilo que sentem tem sido o ponteiro da bússola que utilizo para me orientar.
Todos têm algo que os liga à vida (ou não estariam à procura de ajuda), todos procuram libertar-se, ter um sentido, recuperar desejos ou aliviar o sofrimento. Existem aqueles que procuram uma bengala, um suporte, só querem falar (como se ser ouvido não fosse das coisas mais importantes); outros desejam (re)conhecer-se, tratar-se ou desenvolver-se; aquilo que todos desejamos, alguém que nos escute sem juízos de valor, preconceitos ou acusações. Liberdade para sermos quem somos, sem disfarces.
Na Saúde Mental, con(fundir) as pessoas com os seus sintomas (ou doenças) pode ser (quase sempre é) um erro grave, atrás do qual alguns profissionais se escondem de forma a camuflar
as suas próprias fragilidades. Afinal é muito mais fácil e confortável conhecer sintomas do que compreender pessoas.
Ao longo de muitos anos da minha prática profissional habituei-me a escutar cada pessoa que entra no meu consultório não através do filtro das suas doenças (às vezes a doença fala em nome da pessoa), mas através do que me diz acerca de si e dos outros, como pensa, como se comporta, do que sente e do que me faz sentir… como é a pessoa, o que me diz o seu sofrimento… Procuro orientar-me através das suas angústias, não perder o rumo, manter-me consciente de que quem me entra no consultório são pessoas, não são doenças!…
Autor
Rolando Andrade, Psicólogo Clínico (CP O.P.P 4365).
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