Existem pessoas que vivem (e pensam e se comportam) como se fossem um intervalo de si mesmas… ocupam o espaço/tempo do intervalo em que transformaram as suas vidas preenchendo-o com sonhos e projetos acerca de sonhos e projetos nunca concretizados, amores não vividos, desejos não materializados… estas pessoas sentem-se um mero intervalo, como se fossem uma não existência… “não me sinto eu mesmo”… ; “parece que estou parado no tempo…”; “se já não tivesse esta idade…”; “às vezes penso nisso, mas depois”… depois os medos não deixam, a angústia é mais forte (paralisa), é mais fácil e mais seguro (quem não arrisca…) seguir com a vida em piloto automático (cuidado, porque é o piloto automático que vai no comando, não você).
Às vezes estas pessoas até sentem (ou querem acreditar que) estão estáveis (estáveis ou estagnados?). Vivem assim, nesse intervalo em que se transformaram… como uma borboleta que nunca fez a sua metamorfose, “por vezes olho-me ao espelho e não me reconheço” (não se examina), “às vezes penso no que me transformei” e no “que poderia ter sido” (o que poderia ter sido… os seus desejos assustam? Metem medo?…).
Sobre(vivem) como se fossem felizes, como se estivessem felizes no emprego, “se eu pensar bem, até nem estou mal”… (nem sempre racionalizar dessa forma é pensar bem… às vezes é apenas um esconderijo), como se os seus relacionamentos fossem saudáveis ou aceitáveis, como se tudo fosse normal, expectável e fruto de uma escolha. Sobre(vivem) como se fossem (ou sentissem) inteiros, completos… mas na realidade decidiram esconder-se fingindo que a realidade do que são é idêntica à verdade do que desejariam ser.
Quando analisamos a realidade destas pessoas, a forma como pensam e se expressam (ou simplesmente como ficam em silêncio), deciframos o “perfume” subtil (quase indecifrável), através do qual se revela o código de acesso a este (e cada um tem o seu) Mundo misterioso… “se tivesse tido mais sorte…”, “se não fosse ter acontecido aquilo…”, “se tivesse um emprego melhor…”, “se tivesse mais tempo…”, “se fosse mais bonito…”, “se não tivesse nascido nesta família”, “se noutra altura tivesse estudado”… SE…e só se, assim se revela o manto de nevoeiro que ofusca a vida destas pessoas… os seus medos e inseguranças, as suas raivas e ressentimentos, os desgostos e (des)ilusões consigo e com os outros… tudo o que distrai do que importa… (o que desejo ser?), e conduz a uma prisão sem muros nem grades, revela-se assim numa palavra… se.
Cada um é um Mundo… cada Mundo é como um pequeno universo, com as suas lógicas de funcionamento, a sua história, os seus projectos, os seus segredos e desejos; atrás dos muros de cada Mundo individual habitam 2 versões de nós: aquele que se deseja ser, e aquele que se é (ou sente ser) na realidade; “às vezes sinto-me uma fraude” (não estará a ser demasiado exigente consigo? Ou será uma falsificação daquilo que idealizou para si?)… saber qual das versões é verdadeira (a do desejo ou a da realidade) é um trabalho de persistência (perseverança, constância, firmeza), não se coaduna com os ses (que às vezes não passam de gigantescas paredes de papel, facilmente quebráveis)… não há espaço para ceder ao medo… e às vezes é preciso ter ajuda…para pedir ajuda é preciso reconhecer (voltar a conhecer) que somos frágeis… para isso é preciso ter coragem. É preciso ter um foco, e não ceder ao sufoco dos medos.
Por vezes damos demasiada liberdade ao lado que há em nós que pretende que tudo fique na mesma, mesmo que doa. É este o terreno propício para que os nossos mecanismos psicológicos de protecção individual (mesmo que ilusórios, porque às vezes desprotegem ainda mais) actuem; vamos desta forma aperfeiçoando esta arte de defesa que mesmo quando ilusória (tal como Dom Quixote em luta com os moinhos de vento da sua imaginação) nos dá uma (falsa) sensação de segurança… “se eu não falar disso não me dói”… “ se não pensar nisso”… “por vezes lembro-me, mas não dou muita importância”; é assim que alguém se torna perito na arte dos ses.
Passamos a agir como um trapezista bêbedo, que como nunca caiu verdadeiramente do trapézio (ou já caiu mas fingiu que não doeu) acredita que é capaz de continuar assim… o problema é que as alegrias são na maioria das vezes silenciosas, enquanto a dor da insatisfação há-de, mais tarde ou mais cedo, manifestar-se de forma ruidosa… é nessa altura que a maioria percebe que seria mais feliz, se não fossem todos aqueles ses que deixámos que condicionassem e dominassem a nossa vida.
Autor
Rolando Andrade, Psicólogo Clínico (CP O.P.P 4365).
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